Conjuntura Indígena - Novembro de 2013

 

Novos ataques aos direitos indígenas: as portarias 303 e 415 da AGU
Por José Maurício Arruti
 

No dia 16 de julho passado, a AGU - Advocacia-Geral da União publicou a portaria 303/2012 fixando “a interpretação das salvaguardas às terras indígenas, a ser uniformemente seguida pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta”. Segundo tal interpretação, o poder público teria o direito de realizar intervenções em terras indígenas sem a necessidade de consultar os índios ou a Fundação Nacional do Índio: a "soberania nacional" justificaria construir bases militares, estradas ou hidrelétricas em áreas demarcadas "independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai". A portaria também veda a reavaliação do tamanho de terras indígenas demarcadas (salvo quando ficar comprovado erro jurídico no início do processo de demarcação) e anula os direitos indígenas sobre seu subsolo: o "usufruto da riqueza do solo, dos rios e dos lagos" em terras indígenas "pode ser relativizado sempre que houver interesse público da União".

A portaria implica, de fato, em uma tentativa de anular direitos previstos na Constituição brasileira, assim como em tratados multilaterais assinados pelo país. O artigo 231 da Constituição de 1988 diz que os índios têm "usufruto exclusivo" sobre essa riqueza e que o "aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos [...] em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso, ouvidas as comunidades afetadas". Da mesma forma, tanto a Convenção 1969 da OIT quanto a Declaração da ONU para os Povos Indígenas, ambas ratificadas pelo Congresso Nacional, preveem consultas aos índios sobre qualquer atividade que os afetem. A ausência de consulta aos indígenas é o principal argumento do Ministério Público para paralisar a construção da hidrelétrica de Belo Monte (PA), para tomar apenas um exemplo notório.

Depois de diversas manifestações contra a portaria, por parte de organizações de apoio a causa indígena, como o ISA – Instituto Sócioambiental, o CIMI – Conselho Indigenista Missionário e a ABA – Associação Brasileira de Antropologia, em 20 de julho, a FUNAI também se manifestou, por meio de uma Nota Técnica, condenando a portaria da AGU. A NT ataca o argumento de que a Portaria teria como parâmetro as diretrizes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de 2009 sobre a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol (Petição 3.388-Roraima), já que ao tomar sua decisão, o STF não estipulou que o caso devesse valer para todas as demais reservas do país, mas, pelo contrário, asseverava que a decisão não deveria gerar efeito vinculante para os demais processos envolvendo a demarcação de terras indígenas. Além disso, o julgamento da Petição 3.388-Roraima ainda não foi encerrado, existindo embargos de declaração pendentes, que visam esclarecer a interpretação e os efeitos atribuídos às condicionantes estabelecidas na decisão do caso mencionado.

No dia 24, a Funai informou, por meio de nota divulgada à imprensa, que a Advocacia Geral da União (AGU) concordou em suspender temporariamente os efeitos da Portaria nº 303/2012 e, dois dias depois, a Portaria 308/2012, estabeleceria que “Esta Portaria entra em vigor no dia 24 de setembro” (D.O.U. de 26 de julho).

A sociedade civil e, em especial os movimentos indígenas organizaram diversas manifestações em repúdio à portaria 303/2012.

  • No 26 de julho, servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), da UnB e do Arquivo Nacional fizeram um protesto na portaria do prédio da AGU, em Brasília, realizando o enterro simbólico dos direitos indígenas;

  • Poucos dias depois, um coletivo de organizações indígenas, encabeçado pelo Conselho Indígena de Roraima, anunciava para o dia 9 de agosto, reconhecido pela Organização das Nações Unidas como Dia Internacional dos Povos Indígenas, uma marcha indígena em Boa Vista;

  • No final de agosto manifestantes indígenas interditaram trechos de duas rodovias que cortam Mato Grosso: na 364, no trecho denominado Aricá Mirim e na 174, na divisa com Rondônia;

  • No dia 27, um grupo de indígenas de sete etnias do Tocantins e de Goiás se reuniu no prédio da Advocacia-Geral da União (AGU), em Brasília e entregaram um documento de protesto;

  • No dia 30 de agosto, durante a 18ª reunião ordinária da CNPI – Comissão Nacional de Política Indigenista, a Bancada Indígena Comissão publicaria, por meio do CIMI, uma nota de repúdio, seguida do anúncio de que a própria Comissão solicitaria ao Governo Federal a revogação da Portaria.

  • No dia 03 de setembro o CIMI divulgava uma nova nota pública de repúdio, agora dos povos indígenas do Maranhão;

  • No dia 04 seria a vez dos índios de Rondônia se manifestarem, com a concentração de cerca de 200 lideranças em frente ao Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Estado (Sindsef) em Ji-Paraná;

Em resposta a tais mobilizações de repúdio, assim como em resposta ao principal argumento técnico em contrário à Portaria 303/2012, no dia 18 de setembro, a AGU publicou uma nova portaria (415), estipulando que a medida só entrará em vigor após o STF publicar o acórdão com a decisão do julgamento dos embargos declaratórios (esclarecimento de sentença) relativos às 19 condicionantes impostas pela própria Corte, em 2009, sobre a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol. A decisão, porém, ainda que represente mais um recuo da AGU, continua sendo de valor discutível, na medida em que em lugar de gerar segurança jurídica, como diz sua justificativa, faz justo o contrário. Primeiro, ninguém sabe quando o julgamento dos embargos acontecerá e, segundo, ninguém sabe qual será tal julgamento. Diante disso a portaria deveria ser anulada e não vinculada a uma decisão que ela mesma pode vir a desrespeitar.

A situação torna-se, assim, de tal criticidade que a Anauni – Associação Nacional dos Advogados da União, que representa os advogados dos órgãos federais, publicou, em 19 de setembro, uma nota considerando inconstitucional as portarias 303 e 415. Enquanto, por outro lado, no mesmo dia, a Sociedade Rural Brasileira (SRB), encaminhava, via Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), ofício ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, pedindo que a Portaria 303 seja mantida “sob pena de se instalar uma insegurança jurídica no país”.

Assim, novamente recai nas mãos do STF uma importante decisão relativa ao reconhecimento e garantia dos direitos indígenas, assim como continua sob expectativa o julgamento, também pelo STF, da ação (ADI) contrária ao decreto presidencial de 2003 que reconhece e regulamenta os direitos territoriais quilombolas. O ano de 2013 promete substituir a tensão midiática espetacular do julgamento do Mensalão por um drama muito menos espetacular e consensual diante da mídia, mas que pode ser estopim de conflitos generalizados pelo território nacional.

Principais matérias do repositório de notícias CPEI sobre o assunto:

A Portaria 303/2012

Nota da Funai contra Portaria

Matérias sobre o debate:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/1121774-portaria-da-agu-diz-que-gover...
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-07-20/funai-portaria-da-agu...
http://www.leidoshomens.com.br/index.php/noticias/agu-nega-nota-da-funai...
http://www.panoramabrasil.com.br/comissao-indigenista-pede-revogacao-de-...
http://www.dci.com.br/politica/agu-decide-esperar-acordao-do-stf-para-co...
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-10-31/indios-e-produtores-r...

Manifestações contrárias à Portaria:

http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6490&action=read
http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3676

Manifestações em favor da Portaria:

http://nacaomestica.org/blog4/?p=6350
http://www.srb.org.br/modules/news/article.php?storyid=5944

Entrevista com João Pacheco de Oliveira sobre o debate:

http://acritica.uol.com.br/amazonia/Portaria-AGU-violencia-indigenas-ant...

A população indígena e a ditadura militar
Por Bárbara Roberto Estanislau
 

As reportagens que apareceram no scoop.it do CPEI sobre esse tema se deram a partir do segundo semestre desse ano, logo após a aceitação da Comissão Nacional da Verdade em investigar os crimes da ditadura brasileira, nesse caso, em relação à população indígena. O aparecimento de uma reportagem sobre uma situação similar de trabalho análogo ao escravo e de tráfico de pessoas no Paraguai, também durante a ditadura, nos leva a pensar que talvez a repressão sofrida pela população indígena tenha ocorrido durante muitos dos regimes militares latinoamericanos. O reconhecimento da CNV da existência desses crimes, já catalogados como ocorrentes em 17 estados brasileiros, já é uma vitória, pois se trata de um reconhecimento da população indígena como população participante e ativa, em muitos casos, contra o regime, sendo importante a lembrança de seu papel na história e a sua restituição por meio do Estado, assim como qualquer outro indivíduo no Brasil.

A CNV inicialmente planeja trabalhar com dois eixos, nos quais os primeiros se referem aos “casos que envolvam confrontos diretos de povos indígenas com forças armadas e entes do governo, e o dos casos em que o conflito se dá em função das políticas de desenvolvimento implantadas durante a ditadura.”[1]. Dentro desse segundo eixo gostaríamos de ressaltar a existência de diversas políticas de extermínio de populações indígenas ou deslocamentos forçados quando estas estavam “entravando o desenvolvimento”. O fim do regime ditatorial e o consequente advento da Constituição de 1988 fizeram com que houvesse um grande avanço nessa área com a instituição da obrigatoriedade de estudos de impacto socioambiental na área e nas populações afetadas, a consequente busca para uma diminuição dos impactos e a exigência da oitiva aos povos afetados, muitas vezes indígenas. Claramente o Estado deixou pra trás o paradigma foucaltiano do “deixar viver e fazer morrer” para o “fazer viver e deixar morrer”. Seria, então, a tentativa de aprovação da Portaria 303 da AGU uma maneira de voltar para a “política indigenista” anteriormente instituída na ditadura?

Reportagens

02/08/2012 O papel da FUNAI na Amazônia durante a ditadura

12/08/2012 Paraguai: do trabalho forçado à liderança indígena

13/08/2012 Entidades de direitos humanos investigam genocídio indígena na ditadura

 09/10/2012 O Presídio Indígena da Ditadura

Vídeos

Ditadura Militar e População Indígena - Brasilianas.org entrevista Tiuré - Partes 1, 2, 3 e 4.

Tribunal da Ditadura avalia casos de violação dos direitos humanos no Brasil

Uma carta e suas reverberações – a morte coletiva Guarani-Kaiowá
Por Alessandra Traldi Simoni 
 

Neste bimestre mais uma vez o povo Guarani-Kaiowá alcançou as notícias de jornais do Brasil, como levantamos no primeiro encontro sobre conjuntura indígena, no entanto com uma diferença significativa, um novo fato foi gerado através de uma carta do próprio grupo que conseguiu ampla mobilização da opinião pública.  Seguindo a cronologia das notícias veiculadas a respeito podemos observar que no dia 09 a carta Guarani-Kaiowá veio a público e em um primeiro momento não obteve repercussão na grande mídia ou provocou mobilização. Uma semana depois a carta começou a ser tema de artigos de opinião que circularam por grandes portais de notícia, como Folha, Estadão e O Globo. É neste momento que há uma atenção da mídia em noticiar a carta, em que a manchete escolhida remetia ao suposto suicídio coletivo pretendido por aquele grupo, enquanto a carta falava de uma morte coletiva. Note-se que nenhum artigo de opinião segue esse viés interpretativo, mas é exatamente esta notícia sensacionalista que consegue a atenção popular. Com campanhas em redes sociais (Somos todos Guarani-Kaiowá), petições públicas online e finalmente chamadas para eventos públicos em apoio ao povo Guarani-Kaiowá, sempre para evitar seu suicídio. Com a dimensão que a notícia tomou algumas organizações publicaram notas públicas para esclarecer que não se tratava de um suicídio coletivo. De qualquer maneira o fato já havia se desdobrado em ações e finalmente moveu o Ministério Público a reverter decisão inicial que expulsava os Guarani-Kaiowá da área em disputa. A fala de um procurador da república é reveladora nesse sentido: 

"A mobilização das redes sociais foi definitiva para alcançar esse resultado. Provocou uma reação raramente vista por parte do governo quando se trata de direitos indígenas", disse o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, que atua em Dourados.[2] 

Assim, gostaríamos de trazer para o debate neste terceiro encontro sobre conjuntura indígena como estes eventos se sucederam, a carta em si, a reação da mídia, considerando de maneira geral as notícias, artigos de opinião e notas públicas e finalmente as ações que estas suscitaram tanto por parte da sociedade civil e Estado.  

Carta Guarani-Kaiowá 

09/10/2012 Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil (Carta postada no perfil Aty Guasu no facebook)

Descrição do perfil: O perfil da Aty Guasu no FB é mantido e alimentado por membros do Conselho da Aty Guasu. Destina-se, primariamente, à divulgação pública de comunicados oficiais desse órgão.O perfil da Aty Guasu no FB é mantido e alimentado por membros do Conselho da Aty Guasu. Destina-se, primariamente, à divulgação pública de comunicados oficiais desse órgão.

Artigos de opinião

19/10/2012 Marina Silva – “Sobre todos nós”

22/10/2012 Eliane Brum – “Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”

27/10/2012 Tonico Benites  - Blog Prosa

28/10/2012 José Ribamar Bessa – “Corta essa de suicídio” 

Notas públicas

19/10/2012 FUNAI: Esclarecimentos sobre situação de Pyelito Kue (MS)

23/10/2012 CIMI: Nota sobre o suposto suicídio coletivo dos Kaiowá de Pyelito Kue

29/10/2012 CTI: Nota pública do CTI sobre a questão fundiária Guarani-Kaiowá 

Notícias:

19/10/2012 Índios anunciam suicídio coletivo no MS

24/10/2012 Situação dos índios de MS é tensa, mas eles não vão se matar, diz Cimi

31/10/2012 MPF comemora decisão que mantém índios em terra guarani-kaiowá no MS

01/11/2012 Mais de 4 mil prometem “morte virtual” no Facebook em apoio aos índios de MS

01/11/2012 Como uma carta (e a Internet) salvou uma tribo brasileira

02/11/2012 Uma tragédia indígena

04/11/2012 Vergonha Nacional 

Vídeos

A Luta Guarani

Filme sobre o assassinato do líder Kaiowá Nísio Gomes e a luta dos povos Kaiowá no Mato Grosso do Sul para a demarcação de seus territórios tradicionais.

Direção: Felipe Milanez e Paulo Padilha.

 

Outro Olhar – índios Guarani-Kaiowá

O líder índio Kuelito Puê fala como os Guarani-Kaiowá vão seguir na luta pela terra. Eles descartam a hipótese de suicídio coletivo. A produção é da Associação Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri).

 

[1] Trecho retirado do texto Entidades de direitos humanos investigam genocídio indígena na ditadura.

[2] Trecho retirado da matéria “MPF comemora decisão que mantém índios em terra guarani-kaiowá no MS”